"Falar da
subsistência material em meios de salão é uma actividade mal vista, mesmo entre
a esquerda intelectualóide. Acredito que isto se deve ao facto de até há bem
pouco tempo o tecido dos artistas em Portugal ser sobretudo formado por pessoas
provenientes de uma elite económica e/ou artística. E nós sabemos como as
elites têm hoorrooor de falar de dinheiro. É fácil imaginar como durante a maior parte do
século XX, num país sem grande investimento na educação artística (para a
população em geral), muitos artistas saíam das famílias onde tinham recebido
essa educação e (sobretudo) onde tinham já amigado com os futuros
programadores, galeristas, editores que frequentavam o mesmo ciclo social. Em
muitos destes casos a subsistência material não era assunto em si, uma vez que
o património familiar assegurava habitação e outras necessidades básicas. Para
além do peso que um nome de família exercia na negociação de um espaço de
visibilidade, acrescentava ainda a coincidência dos mecanismos de legitimação
serem manobrados por alguém que se conhecia, da mesma criação, poventura? E
afinal também eram poucos, os artistas, aqueles que conseguiam cumprir-se numa
paisagem política adversa. Será grosseiro meter as artes todas no mesmo saco, é
verdade: basta pensar como até certos pobres conseguiram uma educação, e
lembrarmo-nos da quantidade de escritores que foram ex-seminaristas. Mas a
igreja nunca foi terreno muito propício para as gulas dos artistas plásticos,
ou para música que não fosse parada. Olhemos para esta oligarquia: autores,
produtores, patronos, e público situam-se no mesmo plano social. Quem é
estranho a esta tribo tem de trabalhar arduamente o alpinismo social para um
dia poder ser recebido entre pares, e esquecer os hábitos do lugar de onde
veio. Ou então ficar de fora, e mendigar as migalhas como um cão. Foi esta paisagem que conheci, quando bati à
porta do mundo. Mas as coisas foram mudando. A democracia estendeu tapetes, e a
industrialização das artes deu uma mão, e hoje existem possibilidades razoáveis
para um qualquer filho de um subúrbio abraçar uma profissão artística. A
questão da subsistência coloca-se agora no centro do mapa: como as artes são um
sorvedouro de recursos sem benefícios visíveis (com excepção dos corsos de
entertenimento) resta aos artistas mendigar junto de patronos públicos ou
privados. A arte apresenta-se como uma produtora de pobreza, e qualquer
atribuição de valor civilizacional parece depender da subjectividade de quem
detém os meios financeiros (os seus ou os do Estado). Mas ouço já ao fundo o
coro dos curadores (esses porteiros de discoteca muitas vezes bem mais pagos do
que as strippers que lá dentro dão o corpinho ao manifesto): que sempre foi
assim, que o Mondrian pintava flores para pagar as contas, que o Chopin era um
pobretanas, que o Picasso escolheu o bairro das ricas burguesas para se
instalar em Paris.Que cada um faça por si, e que o talento se manifeste nessa
esperteza. Mas conseguirão os artistas produzir alguma coisa de interesse numa
lógica de mercado? E qual mercado, o do relógio? Deixarão de ser visíveis pelo
seu trabalho para passarem a ser salsichas-celebridade dos media? Poderão
vender em lata a "sua" merda?"
António
Jorge Gonçalves
Jornal de
Letras
17 de
Fevereiro de 2012