Sabemos como os artistas florentinos do Quattrocento tinham dominado a realidade
graças à precisão do seu desenho, convertido em instrumento de conhecimento e
apreensão racional do Mundo. Tanto que Cennino Cennini entendia “o desenho como mãe de todas as artes” (Tratado da Pintura, 1398), e por onde
tudo devia começar.
Mas, para Miguel Ângelo, o desenho é entendido
num sentido platónico e é, antes do mais, o “traço”, a forma mais imaterial da
Ideia. Pois, o desenho corresponde à fase prévia da criação, puramente
espiritual, à manifestação da Ideia em linhas e traços antes da obra se
transformar em forma material. Quanto a esta, Miguel Ângelo elegeu a escultura,
pois era a única que permitia retirar o supérfluo de um bloco informe de
matéria, fazendo aparecer a “forma ideal” e conforme à perfeição das coisas
naturais.
Talvez, por isso, as figuras que pintou no tecto
da Capela Sistina surjam com a tensão
e a vibração plástica próprias da escultura. Num vasto programa iconográfico
integrando centenas de figuras distribuídas com um ritmo alucinante numa
moldura arquitectónica, Miguel Ângelo abordou a história da humanidade, segundo
o Genesis, desde a Criação até ao
Dilúvio Universal.
Obra monumental e de superior riqueza plástica e
iconográfica, atinge na cena A Criação de
Adão, o apogeu. Traduzindo o pensamento do artista-criador, a fusão do mito
com a fé que esta imagem encerra, reflecte também a reconciliação do homem com
Deus, no final do humanismo.
Anunciando a saturação do programa artístico
renascentista, a arte de Miguel Ângelo revela-nos um mundo em mutação, já
distante da crença incondicional no homem que motivou os humanistas e
preconizando o despontar de uma nova época.