De que falamos quando falamos de “contemporâneo”? | M10


Se o “breve século XX” transcorreu entre 1914 e 1991, então agora, precisamente 20 anos depois do fim da União Soviética e da instituição da União Europeia é o momento também de reflectir: que tempo é o nosso, de “que” somos os contemporâneos?
Graças a uma salutar muito maior divulgação da informação científica sabemos agora da ocorrência de fenómenos, sobretudo astronómicos, que só vão voltar a ocorrer muito tempo depois: um eclipse ou uma lua cheia com certas características, a passagem de um cometa, uma chuva de asteróides, etc. No concreto terreno humano e da História, todos temos a noção de como o nosso presente, se é de uma excepcional aceleração, é também feito de recorrentes recorrências ao passado, numa lógica de atracção pelos números redondos: os 10 ou 25 ou 50 anos de "x", o(s) centenários(s) de "y", etc.
Tanto mais assim sendo, é deveras espantoso que tenha passado despercebida uma coincidência extraordinária: a cimeira do precipício e da "tempestade perfeita" da União Europa, no final da passada semana, mas também a primeira vaga democrática de contestação na Rússia pós-soviética de Putin, ocorreram quando passavam exactamente 20 anos de dois acontecimentos do maior relevo na História Contemporânea, sendo também extraordinário mas de igual modo iluminante que tais dois factos tenham acontecido em dias sucessivos: a 8 de Dezembro de 1991 os presidentes da Rússia, Ucrânia e Belarus proclamaram a Confederação de Estados Independentes - e mesmo que alguns estados houvessem proclamado a independência antes, que o caminho estivesse traçado desde o falhanço do golpe de Estado em Agosto, ou que a dissolução formal tenha ocorrido a 25 de Dezembro, essa declaração foi o final de facto da União Soviética. A 9 e 10 de Dezembro de 1991 a cimeira de Maastrich refundava a Comunidade Económica Europeia em União Europeia.
Se, no entendimento consagrado de Eric Hobsbawm em "Era dos Extremos", o "breve século XX" transcorreu entre 1914 e 1991, então agora, precisamente 20 anos depois do fim da União Soviética e da instituição da União Europeia, é o momento também de reflectir: que tempo é o nosso, de "que" somos os contemporâneos?

Em rigor, não sei se podemos efectivamente falar com pertinência de um "nosso século XXI", neste ponto preciso na esteira da análise de Alain Badiou em "Le Siècle", segundo a qual estamos ainda tão dependentes em termos de pensamento e análise de condições do século XX que o XXI ainda não começou (há que dar-lhe início, entende, mas tal supõe também razões filosófico-políticas que não compartilho), sendo um facto que continuamos muito imersos em conceptualizações que se mostram desfasadas nestes 20 anos constitutivos de um outro tempo, da nossa contemporaneidade.
Retomando Hobsbawm, agora para o parafrasear, serão "Tempos Interessantes", do ponto de vista ideológico-cultural, mas certamente "tempos difíceis" e mesmo terríveis. Então, como reconhecemos a nossa contemporaneidade? Ou dito de outro modo, de que falamos quando falamos de contemporâneo?
O que importa é um (re)conhecimento das condições e criações estéticas e culturais mas também da sua inscrição histórica. Sempre se foi "contemporâneo", no sentido de inscrito com outros num tempo próprio, a questão é que o "contemporâneo" se transformou em categoria e condição, de que tão difusa se tornou indefinida - "arte contemporânea" é um termo (re)corrente, não tanto uma categoria precisa. Justamente então, a percepção de que estamos numa nova era nestes últimos 20 anos, impõe que se agudize a questão colocada por Giorgio Agambem "O que é o contemporâneo?".

A questão é dupla, de "condição" e "historicidade".
Os modernismos tiveram uma inscrição histórica precisa: "Les Demoiselles d'Avignon" de Picasso em 1907, o "Manifesto Futurista" de Marinetti em 1909, o "Pierrot Lunaire" de Schönberg em 1912, "A Sagração da Primavera" de Nijinsky e Stravinsky em 1913, foram emblemáticos; mas a "primavera" não foi de facto "(con)sagrada" porque logo depois ocorreu a Grande Guerra, a I - a autonomia do campo artístico não foi indemne às duas grandes conflagrações mundiais, aos totalitarismos e às crises, e este é um ponto histórico importante a não esquecer.
Mas o que é a "arte contemporânea", essa é uma noção muito mais fluida. Sem dúvida que houve uma radicalização depois da II Guerra, mas mesmo essa noção é vaga porque não tem precisão entender que a "arte contemporânea" se inicia no segundo pós-guerra e que com isso se conclui o "modernismo histórico".

A imprecisão ocorre de uma arte para outra e também, não o esqueçamos, de língua para língua. Mas atendamos, a título quase anedótico, mas revelador, a dois exemplos.
Celebra este ano um século o Museu do Chiado, Museu Nacional de Arte Contemporânea - que era contemporâneo quando a República o institui mas que há muito deixou de o ser, o que aliás está na origem de um equívoco reiterado.
Pode considerar-se, em rigor, que a música contemporânea se formalizou com a "tabula rasa" da "vanguarda" da "geração de Darmstadt", logo após a II Guerra. Como aquela todavia se reclamou, radicalizando-a, da "Escola de Viena" de Schönberg, Berg e Webern, então também a "música contemporânea" tem um século, o que é um oximoro, remetendo-a antes para corpo à parte da música erudita da tradição europeia.
E há mais exemplos de reflexão. Por certo que houve historicamente um "cinema moderno", e mesmo mais do que um (as "vanguardas" dos anos 20 e as "novas vagas" dos anos 60, na esteira de Rosselini), mas faz algum sentido falar de "cinema contemporâneo" a propósito de uma produção regida pela noção mediática de "actualidade"? Não será uma deformação fazer coincidir o "teatro contemporâneo", seja lá o que for, com o "Teatro Pós-Dramático" teorizado por Hans-Thies Lehmann e tão em voga? Etc, etc.
Em vários dos exemplos, se não mesmo em todos, está implícita uma narrativa da História da(s) arte(s): o "modernismo" teria ocorrido depois do "clássico" em sentido lato, e o "contemporâneo" teria começado "depois do modernismo".
Mas existe um outro entendimento desse "depois do modernismo". Em 1979, Jean-François Lyotard publicava "A Condição Pós-Moderna". Poucos termos foram objecto de tantos equívocos. Houve o entendimento de um "pós-modernismo" como uma outra tendência estética ou estilo. De facto, enquanto tendências, já havia antes uma "postmodern dance" com o grupo da Judson Church desde 1962, e Robert Venturi tinha publicado "Complexity and Contradiction in Architecture" em 1966 - aliás concepções de todo diferentes, tendo apenas em comum a reacção ao "modernismo". A questão crucial que Lyotard enunciava era no entanto a da "condição", a crise das grandes narrativas históricas de legitimação. Do colapso do comunismo soviético à crise actual do capitalismo, do estado-providência, mesmo da democracia representativa e certamente do "sonho europeu", é patente a derrocada dessas grandes narrativas, dos "amanhãs que cantam" ao "progresso", de um "sentido" e "finalidade" da História.
"Contemporâneo" não é pois um estado do presente que vem na sequência de um passado e que rasga novos horizontes, prometendo um futuro. Por isso nestes tempos tão drásticos de crises se impõe repensar o que é a "condição contemporânea" de uma criação artística e cultural e da sua recepção. É uma reflexão a continuar.