Keith Haring primeiros passos

 
Keith Haring: 1978-1982, um novo olhar sobre um dos artistas do século XX. Centra-se no período de formação do artista, quando começou a confrontar a sua arte com a rua - metade destes trabalhos nunca tinham sido vistos pelo mundoNo início estava a trabalhar o mesmo estilo, mas depois tudo começou a acontecer. Talvez o mais importante tenha sido conhecer o trabalho de William Burroughs. Conheci-o por acaso, como quase tudo o resto, por acaso-oportunidade-coincidência." Esta foi a forma como Keith Haring descreveu a sua mudança para Nova Iorque, em entrevista à Rolling Stone.
 
Nova Iorque foi a cidade onde se descobriu como street artist, performer e curador, e onde colaborou com artistas como Jean-Michel Basquiat e Andy Warhol. A sua carreira parece ter sido impulsionada pela energia da cidade, onde hoje se continua a sentir a sua presença, alimentada pelo circuito de galerias e museus, mas também respeitada por uma nova geração de graffiters. Participou activamente na vida da comunidade artística na vibrante East Village do início dos anos 80, altura em que o uso do espaço urbano como forma de arte se expandia, e ele próprio se permitia explorar a sua expressão artística, para além daquilo que lhe era proposto nas aulas.  

O estudante

1978 foi o ano em que se mudou para Nova Iorque, depois de desistir da escola de artes em Pittsburgh, onde teve a sua primeira exposição individual. Tinha apenas 19 anos quando se mudou para um apartamento em Greenwich Village e se inscreveu na School of Visual Arts (SVA), em aulas de pintura, escultura, história de arte, desenho,vídeo, semiótica e artes performativas. O interesse pelo desenho começara nos primeiros anos de vida na Pennsylvania, onde aprendeu técnicas de cartoon com o pai. Era referenciado como estudante dedicado e determinado, sempre com trabalhos de uma excentricidade superior à dos outros alunos. Essa dedicação é possível de ver quando olhamos para os diários e cadernos de esboços desta altura: um artista versátil, pela variedade de composições e padrões desenhados a caneta, mas também perfeccionista e obcecado pelo traço.
É uma das facetas de Haring que a exposição Keith Haring: 1978-1982, no Brooklyn Museum, nos permite descobrir. A mostra dedica-se ao início da sua carreira, proporcionando um novo olhar sobre um dos artistas mais conhecidos do século XX. Ao entrar nas galerias do 5º andar do museu, o público pode seguir diferentes caminhos, não há uma ordem cronológica, mas podem-se identificar temas: o abstracto, a linguística, o figurativo. Raphaela Platow, curadora da exposição organizada pelo Contemporary Arts Center em Cincinnati (Ohio) e o Kunsthalle Wien na Áustria, repete que os mais de 300 trabalhos apresentados são apenas uma ínfima parte daquilo que encontrou nos arquivos. "Olhei para centenas e centenas de desenhos, esta é uma pequena selecção de um artista incrível com muito trabalho produzido." Platow é alemã e diz que se deixou fascinar por Keith Haring por ter vindo de uma cultura distinta: "Tenho uma pespectiva diferente para ver arte. Este ambiente cultural era tão diferente do meu, que me permitiu olhar para tudo. Interessei-me primeiro pelo movimento de street art, e depois pela forma como Haring desenvolveu a sua linguagem visual."
Teve acesso total aos arquivos da Fundação Keith Haring, que também esteve envolvida no processo. Descreve: "dias e dias a olhar para caixas de arquivo, a desenrolar desenhos que não eram olhados há anos. Enquanto curadora foi experiência marcante, o poder ficar tão próxima do trabalho de um artista e ter a oportunidade de olhar para objectos que nunca foram realmente partilhados com o público." Esta intimidade e unicidade é conseguida pela selecção que, ao focar-se apenas nos primeiros anos da carreira do artista, nos permite sentir a energia contagiante de Keith Haring.
Tricia Laughlin Bloom, curadora do projecto em Brooklyn, acrescenta que "metade dos trabalhos apresentados nunca tinham sido mostrados ao mundo, o que lhe dá uma perspectiva educativa". Nesta exposição podemos ver o método para além do artista, os cadernos onde desenvolveu o alfabeto geométrico, o seu interesse pelos sistemas numéricos, pelos códigos, e a forma como começou a construir padrões com as 25 figuras desse mesmo alfabeto.


Arte pública e graffiti
"O público precisa de arte - e é da responsabilidade do ‘auto-proclamado artista' entender essa necessidade do público, e não fazer arte burguesa, apenas para alguns, ignorando as massas." pode ler-se num dos diários de Haring, Outubro de 1978. Uma das descobertas da exposição é o primeiro contacto da sua arte com o espaço urbano. Haring era um artista de estúdio, mas quando se muda para Nova Iorque sente necessidade de tornar o seu trabalho público, de o mostrar ao maior número de pessoas possível, e por isso escolhe fragmentos de desenhos e cola em postes, em quiosques, e fotografa-os, documentando esse contacto com a rua.
Foi nesta altura, numa Nova Iorque em que a comunidade artística fora da rede das escolas, das galerias e dos museus era ainda mais pulsante, em que se respirava arte em cada esquina de downtown, que Keith começou a ter um papel activo no graffiti. Referiu-se, anos mais tarde, a esta arte como algo que o fascinou: "Os miúdos que o faziam eram muito novos, miúdos da rua, mas tinham esta incrível mestria a desenhar, o que me surpreendeu totalmente. A técnica em si, desenhar com tinta-spray, é incrível, porque é extremamente difícil de se fazer. A fluidez da linha, a escala e a linha preta que junta os desenhos! Desde a infância que era obcecado por esse traço!". E quando em 1980 deixa a escola, depois de alguns professores lhe terem dito que já não tinham mais nada para lhe ensinar, começa a dedicar-se ao graffiti e inventa uma assinatura. O seu tag era um animal, que ao longo dos tempos continuou a desenhar e a assemelhar-se cada vez mais a um cão.
Este legado continua a inspirar artistas consagrados, como Bansky, que prestou homenagem a Haring numa peça que fez em Londres, em 2010, em que usa o famoso cão a ladrar. Para Tricia Laughlin Bloom "Shepard Fairey [famoso pelo poster Hope durante a campanha de Obama, e que também tem trabalhos com a imagem de Haring], Bansky e toda a nova geração de street artists está ligada às mesmas preocupações que Haring tinha. Por outro lado, qualquer estudante de arte ou qualquer pessoa que tenha a oportunidade de olhar estes desenhos, sentirá alguma ligação com o que ele fez." Não é de estranhar que ainda recentemente tenha encontrado, num café no Soho, um street artist, com a mesma idade que Keith tinha quando descobriu o graffiti, que lhe falava apaixonadamente de um mural que Haring pintou, no Harlem. Referia-se a Crack is Wack, na 128th Street, pintado em 1986. O primeiro mural de Haring, pintado em 1982 com Juan Dubose, estava na intersecção da Bowery com a Houston (downtown), mas durou apenas meses. Em 2008 foi recriado um mural no mesmo local em sua homenagem, e a parede, que hoje pertence à Deitch Projects, continua a ser usada para projectos de vários artistas contemporâneos. Existem ainda mais dois exemplos de Haring em Manhattan, um em Carmine Street e outro no Lesbian, Gay, Bisexual & Trangender Community Services Center, que foram conservados até aos dias de hoje.

Uma das séries mais conhecidas deste período é a Subway Drawings, projecto que acabou por durar cinco anos. Um dia, enquanto esperava na plataforma do metro, Haring apercebeu-se de painéis de papel preto na parede, usados para cobrir antigas publicidades; foi comprar giz e começou a desenhar: desenhos simples, como pirâmides, discos, figuras, televisões, bebés e animais. O bebé com raios à sua volta rapidamente se tornou em assinatura e os nova-iorquinos começaram a reconhecer os desenhos de Haring, mesmo sem saberem a sua identidade. Nessa altura Keith fazia 30 ou 40 desenhos por dia, ia de estação em estação, e Tseng Kwong Chi, um dos fotógrafos mais relevantes do East Village dos anos 80, começou a fotografar o trabalho.

 
Tricia Laughlin Bloom refere que este é um dos exemplos que surpreenderá o público: "Mesmo galeristas, colecionadores e amigos que conhecem o trabalho de Haring, comentaram que nunca tinham visto alguns dos desenhos desta série aqui apresentados, por isso para os visitantes do museu será ainda maior a surpresa.".
Platow escolheu sete vídeos que são apresentados ao longo da exposição. Painting Myself Into a Corner revela Haring a cobrir as paredes e o chão do estúdio num movimento contínuo, construindo um padrão a partir do alfabeto. Raphaela confessa que este é um dos trabalhos que mais a fascina, pela velocidade e agilidade de Haring em pintar, sem interrupções. "A primeira vez que vi fiquei maravilhada com a agilidade e firmeza. Acho que ele se deve ter treinado para conseguir fazer isto, como um pianista, ou um bailarino. Deve ter treinado repetidamente até conseguir fazer o padrão sem parar, pondo uma linha ao lado da outra continuamente." Em Klaus Nomi Performing Lightning Striking desenha à volta de um amigo que lê um poema em voz alta, sentado numa cadeira. O vídeo era para Keith Haring um meio para explorar o seu lado mais performativo, e isso é óbvio em Tribute to Gloria Vanderbilt onde encontramos Haring a dançar de forma contagiante.
Durante este ano de 1979 Haring não desenhou em papel, nem usou os padrões geométricos. Nesta altura as figuras também ainda não faziam parte do seu vocabulário visual. Durante esse período dedicou-se ao vídeo, às colagens e às palavras, à exploração fonética, testando a expressão Lick Fat Boys em inúmeras formas. Foi um período conceptual, em que criou uma fonte com a qual escrevia, integrando poesia, e artigos de jornal. É desta altura uma voz mais forte na crítica social, através de posters que criava com colagens de jornais, mostrando a sua relação com os media e com a publicidade. Abraçava a tecnologia, mas também apontava os seus efeitos negativos na criatividade - Ronald Reagan Accused of TV Star Sex Death, ou Mob Flees at Pope Rally são exemplos. É a fase em que se percebe melhor a influência de William Burroughs. O método de "corte e cola", combinando palavras aleatoriamente, que Burroughs desenvolveu com Brion Gysin no livro The Third Mind, foi a base das colagens e dos posters de Haring, espalhados por toda a cidade como se fossem manchetes do New York Post.

O cartoonista
A série Manhattan Penis Drawings for Ken Hicks de 1978 mostra-nos o lado divertido e cartoonista de Haring, no desenho das torres do World Trade Center em formato fálico ou no Drawing Penisis in Front of Tiffany's, a loja situada na 5ª Avenida. Estas imagens exploram o lado mais sexual e homoerótico de Haring, posteriormente menos enfatizado à medida que o artista se torna mais comercial.
Tricia Laughlin Bloom define esta exposição como o ponto de partida. "Quando desenvolve a linguagem visual que o tornou realmente conhecido, a imagem do bebé a gatinhar, o cão, a sua assinatura, o seu estilo icónico... aqui podemos encontrar as raízes de tudo isso, é uma exposição única por traçar o seu desenvolvimento." Quando ocupou um estúdio no P.S. 122, no início dos anos 80, passou um Verão a construir as figuras que usaria até ao final da carreira. Um dos trabalhos mostra um estudo desses elementos-chave - a pirâmide, o reactor atómico, a figura a gatinhar, o pássaro e o cão. Em 1990 haveria de voltar a esses desenhos de 1981 e compor uma serigrafia com quase 2 metros e meio, que na altura descreveu como "uma cápsula do tempo perfeita do meu início em Nova Iorque": The Blue Print Drawings está agora na Pace Prints, galeria em Manhattan, naquela que é a sua primeira aparição ao público.
Raphaela Platow explica a inspiração de Haring pela linguística - "Olhava as figuras como letras do alfabeto, olhava-as da mesma maneira que as formas geométricas que desenvolveu, por isso basicamente em cada trabalho combina os elementos figurativos de diversas formas e, dependendo do contexto, cria significado. E a interpretação desse significado está aberta, ele não queria dar leituras muito precisas."

O curador
No Brooklyn Museum encontra-se também uma reinstalação de uma parte de uma exposição que Keith organizou no seu estúdio no P.S. 122. Pretende recriar-se a densidade do espaço com os trabalhos apresentados num estilo de salão. "Acho que ele fazia isso com o intuito de desacelarar os dias. Quando algo está pendurado neste estilo, temos de olhar com mais cuidado, é-nos mais difícil distinguir entre uma peça e outra, por isso temos de ter mais atenção; e acho que o diálogo que proporciona é notável.".
Keith foi um catalisador do cruzamento de artistas em East Village, onde organizava exposições, lançava ideias e contribuia para o diálogo. Encontramos na exposição os flyers que criou para a divulgação, os posters que colava pela cidade. Tinha um lado muito profissional, escrevia sempre comunicados à imprensa e distribuía cartas aos artistas explicando exactamente o que tinham de fazer. "Ele tinha uma perspectiva bastante diferente, um lado prático da arte. Acima de tudo achava que a arte devia ser para todos, e também pensava cuidadosamente sobre como disponibilizar o seu trabalho, não era só a ideia de o fazer, mas pensar sobre os diferentes canais que cada um devia usar para o apresentar."

As festas
Não é por acaso que ao longo da exposição somos envolvidos por música dos B-52s ou de David Bowie, que tentam criar uma atmosfera de festa. Numa parede de uma galeria, onde a música soa mais alto, encontramos fotografias de Haring e outros artistas, dando-nos uma ideia da cena artística deste período: espaços como o Club 57, onde Haring explorava o seu lado performativo, com leituras de poesia, representação e dança. É a vida nocturna de East Village. Foi nesta altura que conheceu Kenny Scharf e Peter Shuyff que estão representados pelas Twenty Polaroid self-portraits with glasses painted by Kenny Scharf and Peter Schuyff logo à entrada da exposição, e Jean-Michel Basquiat, de quem encontramos um trabalho em colaboração com Haring, algo que acabaram por fazer com regularidade até 1988, quando Basquiat morreu de overdose. Haring morreu dois anos depois, de Sida.
Tricia Laughlin Bloom confirma que se procurou "evocar o tipo de festas que Keith dava, festas cheias de vida, festas abertas para as pessoas se conhecerem e celebrarem a vida. Haverá também uma festa no museu em que procuraremos trazer pessoas desse período e que de alguma forma estão ligadas ao seu trabalho, e recriar esse ambiente."
Uma das preocupações de Raphaela Platow, antes de avançar com esta exposição, que estará em Brooklyn até Julho, era não fazer mais uma retrospectiva sobre Keith Haring, contribuir de alguma forma para o sector artístico, e com Keith Haring: 1978-1982 consegue-o, de forma intimista e reveladora.