Bernardo Sassetti (1970-2012)Morreu, aos 41 anos,
Bernardo Sassetti, uma figura maior da música portuguesa, com uma vastíssima
obra, que vai do jazz ao fado, de bandas sonoras a improvisos. Procura através da música expressar imagens
interiores que de outra forma não conseguiria transmitir. Aos 35 anos, Bernardo
Sassetti é um dos mais reconhecidos pianistas portugueses da actualidade e tem
dividido a sua carreira entre o jazz (Nocturno e Indigo são os últimos
trabalhos) e as bandas sonoras para cinema e teatro.
Bastam 15 minutos de conversa para perceber que Bernardo Sassetti vive no mundo das artes. Fala de Camilo Castelo Branco, diz que deveria ser capa do jornal todos os dias, nas sessões de cinema da Cinemateca e da Fundação Gulbenkian, das bandas sonoras que compôs, de teatro (está a compor para a peça A Casa de Bernarda Alba, de García Lorca), dos ensaios em que pensa a música que faz, da pintura ou da visão do mundo através do rectângulo da máquina fotográfica. Um músico para sete ofícios, com uma inquietude indagadora e uma curiosidade saudável que naturalmente desembocam no jazz.O jazz como linguagem madura, que parte ou começa de um olhar sobre o mundo em volta e as outras artes, sobretudo as visuais, numa música feita de imagens, que por vezes se aproxima da linguagem erudita.No seu próximo disco, a sair no .nal de Setembro, cruza dois trios, um típico de jazz piano, contrabaixo e bateria e outro da música erudita piano, vibrafone e violoncelo. "É uma tentativa de aproximar dois tipos de linguagem: a música escrita e a música improvisada. É a primeira vez que penso num disco com um conceito, com uma ligação muito profunda nas transições de peça para peça, como se fosse uma suite" explica. Terá ainda uma importante componente de fotografia. Uma paixão mais que assumida que agora é revelada ao grande público. O álbum inclui um portfólio onde Sassetti exibe, pela primeira vez, esta sua arte mais escondida. "Sempre gostei de procurar imagens que sejam uma representação abstracta do real, gosto de ampliar detalhes, de usar a desfocagem fotográ.ca, que nos dá outra dimensão da realidade". E acrescenta: "Estas fotografia têm tanta importância para mim como a própria música. Aliás, a fotografia serve de inspiração para a música e vice-versa, por isso achei importante ligar as duas artes".

Uma escola de rua Bernardo Sassetti é o
mais novo de oito irmãos.
Bernardo começou por seguir os passos do
irmão, que é hoje pianista de música erudita. Após uma curta passagem pela
guitarra, aos cinco, seis anos, dedicou-se ao piano. Estudou música clássica,
mas sem levar muito a sério. "A minha tendência era improvisar sobre as
partituras, o que era um verdadeiro tormento para os professores.
Nunca me identifiquei muito com aquele
tipo de ensino, nem com a postura ao piano. Sempre procurei uma certa
naturalidade na música que não a encontrei no ensino académico".
A partir do momento em que se apercebeu do
"gozo" que o jazz transmite não quis outra coisa.

Até que um dia o professor António Meneres
Barbosa lhe disse: "Sei que estás encantado pelo jazz.
Por isso, tens que optar ou estudas piano
de uma forma séria ou fazes-te à vida". E assim, aos 15 anos, decidiu
dedicar-se de corpo e alma àquela música quente.
A única forma de aprender, na altura, era
por si próprio, porque o jazz é uma "escola de rua". E foi a partir
da "batuta" do seu primo Bernardo Moreira que começou a dar os
primeiros passos nesse universo fascinante. Aconselhava-lhe os discos.

Depois inventou uma "engenhoca"
de grande utilidade: baixou as rotações do gira-discos, para assim conseguir
"tirar as malhas" dos álbuns de Bud Powell, entre outros. Depois
voltava a pôr o disco à velocidade certa e tentava "copiar por cima":
"Foi uma luz. Usei essa engenhoca durante anos".
Os seus primos Moreira estavam muito
ligados ao Hot Clube. Foi ali que, aos 16 anos, tocou pela primeira vez,
perante uma audiência especializada, numa "demonstração penosa" das
suas capacidades como improvisador.
Sozinho, ou em conjunto com os primos,
estudava música de 10 a 12 horas por dia. O jazz tornou-se mesmo uma obsessão.
A tal que até levava os seus músicos preferidos Duke Ellington, Theolonius Monk
ou Bill Evans dentro do walkman, para as aulas, no Liceu Passos Manuel. Até que
um dia foi apanhado.
O estudo intensivo produziu os melhores
resultados.
Aos 17 anos, Sassetti já tinha o seu
próprio trio, para acompanhar, no Hot Clube, solistas que vinham do
estrangeiro. Esse foi um passo essencial na sua aprendizagem, mas por vezes
muito duro, ao ponto de quase o fazer desistir da música: "Lembro-me de
uma vez, com um trombonista americano chamado Al Grey. Passei uma tarde a
ensaiar e, às tantas, ele deixou o palco, sentou-se numa cadeira e disse-me:
'Toca acorde por acorde'.

No primeiro mês em que esteve em Nova
Iorque apanhou uma "overdose" de música: "Vim para cá doente,
doíam-me os ossos de tanto jazz". Também passou um mês em Londres e algum
tempo em Barcelona. Na capital inglesa, por "sorte", relacionou-se
com os músicos da nova geração e beneficiou do estranho facto de haver uma
enorme falta de pianistas. Assim, Sassetti foi sendo convidado para tocar e
ganhou cumplicidade com aqueles músicos. Recebeu mesmo muitas propostas para se
sediar em Inglaterra.
Só que, entretanto, foi apanhado pelo
serviço militar obrigatório. Alistou-se como soldado, porque pretendia ir para
a banda. Após quatro meses de dura recruta, "um autêntico massacre",
apresentouse para a banda da região militar de Lisboa. Passou no teste de
solfejo e o sargento-mor pediu-lhe que fizesse prova das suas capacidades ao
piano. Só que o piano era "uma coisa surrealista", um pequeno Casio
onde os seus dedos mal cabiam: "Comecei a tocar um blues, só que, às
tantas, disse-lhe: 'desculpe, mas tenho que parar, estou aqui a esborrachar
notas, porque os meus dedos não cabem'. Então, o homem ficou furioso e disse-me
'você está a passar dos limites! Vai para a secção de percussão". E assim
um dos maiores pianistas de jazz portugueses passou seis meses a tocar caixa na
Banda da Região Militar de Lisboa. De resto, ainda hoje guarda um calo na mão
direita como recordação.
Até que, em 2002, editou o álbum Nocturno:
"É a minha revelação musical". Está estritamente ligado ao seu
interesse pela relação da música com a imagem "Neste momento é isso que me
move". Claro que não é ainda a banda sonora de de um .lme, mas de alguma
forma, Sassetti procura expor imagens ao piano. Essa relação está novamente
presente no álbum a solo, Indigo, gravado em Belgais, no estúdio de Maria João
Pires.
Experiências diferentes, mas igualmente
enriquecedoras, são os dois álbuns com o pianista Mário Laginha.
O último dos quais, Grândolas é uma
revisitação de temas revolucionários.
"É muito curioso ouvir outro
interveniente a tocar o mesmo instrumento, sobretudo o piano, que é considerado
o mais nobre dos instrumentos, pela dimensão do som. Temos uma abordagem muito
diferente da música, mas que se complementa" Em Novembro esta profícua
colaboração vai dar um novo e ambicioso fruto: Sassetti está a escrever um
concerto para dois pianos e orquestra, encomendado pelo da Orquestra do
Algarve.
Outra área a que se tem dedicado é a
composição para cinema. Deu música a Maria do Mar, de Leitão de Barros (1930),
numa encomenda do canal francoalemão Arte, e, ao vivo na Expo '98, à primeira
curtametragem portuguesa, Os Crimes de Diogo Alves (1911). Compôs também a
banda sonora para Facas e Anjos, de Eduardo Guedes, Aniversário, de Mário
Barroso, e Quaresma, de José Álvaro Morais. Neste último, apanhou um choque.
Tinha composto cerca de uma hora de música e só foram aproveitados 15 minutos.
"Não levei a mal. Foi aí que entendi uma coisa muito importante na música
para cinema a contenção".
Mais recentemente, escreveu música para
alguns tele.lmes da SIC, para A Costa dos Murmúrios, de Margarida Cardoso, e
para O Milagre segundo Salomé, de Mário Barroso. E neste aconteceu um
"autêntico milagre". Paulo Branco aceitou a aposta numa banda sonora
orquestral, pensada logo de raiz. "Normalmente há um orçamento miserável
para a música no cinema, por isso a única possibilidade é recorrer a
sintetizadores e a música plasti.cada. A minha luta foi humanizar a música para
cinema, mesmo ganhando pouco".
Bernardo Sassetti é apaixonado por todas
artes e não se esquece das letras. Bem pelo contrário, diz: "É a arte das
artes. É a literatura que nos faz imaginar todas as outras".
Diz que não escreve bem, mas vai
escrevendo.
Tenta falar da música que faz: "É um
processo complicado. Chego sempre à conclusão que é uma expressão inacabada. É
uma visão artística que .ca sempre em suspenso. O grande prazer é a abordagem
do princípio de cada projecto. A partir do momento em que está posto em
prática, surge a depressão pós-parto. Não é possível encontrar a realização na
música".
Muitos actores não se sentem bem com o
"seu eu" e têm a necessidade de encarnar noutras personagens,
Sassetti diz que o mesmo acontece consigo: "Gosto de pensar que a minha
música é, muitas vezes, verdadeira. Mas às vezes é fingimento e é uma enorme
fonte de fragilidade interior que não pode ser disfarçada".