E
|
mbora assumindo orientações
diversas, a tendência para a valorização do real/natural na pintura vai-se
progressivamente constituindo como afirmação pictórica ao longo do século XIX.
O crescente descrédito do convencionalismo académico entre os artistas que se pretendem
inovadores acaba por elevar a um plano de destaque aqueles que privilegiam a
emoção como elemento primordial na transposição conceptual das evocações (in)tangíveis
(re)criadas. Génio independente, personalidade brilhante e preponderante
relativamente aos restantes elementos do grupo de Barbizon, Jean François
Millet esteve, embora devidamente demarcado dos fundamentos doutrinários
defendidos por Courbet, associado à elaboração de um novo naturalismo. Para
tal, elegeu o Homem na sua constante e dura relação com o meio como tema
essencial de uma obra a que conscientemente conferiu um carácter fatalista:
“c´est le côté humain, franchement humain, qui me touche le plus en art…cen´est
jamais le côté joyeux qui m´apparâit, j ene sais pas où il est, j ene l´ai
jamais vu”.
Esta paisagem pura e austera, de
um lirismo violento, bela mas melancólica, inscreve-se num conjunto de
trabalhos iniciado pelo pintor na década de sessenta. O núcleo é dedicado à
representação de campos imensos onde, a uma impressionante perspectiva de
construção, prevalece associada a força moral e a imutabilidade do instante
captado, num quadro quase brutal de evidente densidade espiritual. O domínio de
Millet é o domínio silencioso da planície gelada (interiorizada), dos
horizontes infinitos, do espaço solitário e agreste onde os vestígios do
trabalho e dos gestos das gentes simples se conciliam com a terra amada.
Sem
ser acessório ou intruso, o homem é neste caso passageiro ou efémero. A monotonia
sonolenta que o olhar percorre é também ela aparente. Ao submeter a totalidade
do universo representado à irreversibilidade cíclica do tempo que tudo
condiciona, Millet sintetiza dessa forma a verdade da composição. A
simplicidade esquematizada do conjunto é definida pela delimitação preliminar
do desenho, conferindo o pintor, através de uma estrita utilização da cor – que
acentua a visão de um mundo cinzento – a sugestão da atmosfera desolada e rude,
cuja intensidade sombria monopoliza a paisagem de infinita permanência. De
perspectiva bem mais próxima, mas de inspiração não distante, possui o
Metropolitan Museum of Art um óleo de Claude Monet intitulado montes de feno com neve, com data de
1891.
Jean – François Millet (1814-1875) |
Hino sincero à natureza e à vida
no campo, esta obra de rara qualidade e grande sensibilidade é bem reveladora
da enorme riqueza interior do seu criador, cujo talento, tão singular – um dos
mais poderosos do século, seguramente -, não só se afirma continuador da
longínqua tradição de Bruegel como anuncia a arte de excepção que, um pouco
mais tarde, Van Gogh virá a praticar.